22 de abril de 2010

Saturnino Braga sobre Tancredo: “Foi líder permanente no cotidiano e decisivo em momentos cruciais” e “Jamais foi aliado de golpistas”


O Brasil comemora o centenário da figura maior de Tancredo Neves, pertencente aoPatrimônio Histórico e Político Nacional.

Foi tudo. Na História e na Política do Brasil. Deputado, senador, ministro, primeiro-ministro, governador, presidente eleito.

Foi líder permanente no cotidiano e decisivo em momentos cruciais.

Após a renúncia de Jânio, em 61, evitou o que poderia ter sido um conflito armado entre brasileiros, intermediando e negociando o acordo de João Goulart com os militares, pelo qual ambas as partes aceitavam a solução do parlamentarismo. Solução artificial, claro, eminentemente casuísta, mas que permitiu ao vice-presidente assumir a presidência sem confronto, como lhe era de direito, e, depois recuperar por inteiro o seu poder.

Isso foi fortemente rejeitado por outros líderes da época. Eles reclamavam o puro, simples e direto respeito à regra constitucional vigente. A maioria desses críticos colimava o esmagamento definitivo da direita golpista, que havia derrubado Vargas e, posteriormente, derrubaria o próprio Jango.

Tancredo Neves tinha esperteza política. Jamais foi aliado de golpistas. Ao contrário. Na chefia do gabinete parlamentarista, costurou o caminho da volta ao presidencialismo, através do plebiscito que aplastou o da direita opositora a Jango.

A habilidade do mineiro mostrou-se por inteiro quando João Goulart, um ano depois do acordo do parlamentarismo, assumiu a Presidência da República com plenos poderes, sem nenhuma ameaça de conflito militar. A volta política tinha sido dada.

O que sucedeu depois é outro capítulo. Ao poder ascendeu, também, junto com Jango, o grupo do confronto definitivo.

Diante da nova encruzilhada, pouco mais de dois anos depois, não restava mais espaço para qualquer negociação. O processo de radicalização ganhou força irrefreável com o acirramento da guerra fria no plano internacional e com o crescimento, dentro do poder nacional, dos referidos grupos mais à esquerda, que rejeitavam frontalmente a “política de conciliação”, como chamavam.

A negociação até foi tentada pelo presidente, cuja intuição lhe mostrava o risco elevado do enfrentamento direto, “mandando brasa” nas reformas de base mal definidas, que produziriam a desorganização econômica propiciadora do golpe.

Jango tentou, sim, a nova rodada de negociação política, através do próprio Tancredo e principalmente de Santiago Dantas, além de Celso Furtado, com seu plano trienal que procurava racionalizar as reformas.

Mas o clima de confronto estava definitivamente instalado e o presidente acabou fazendo a opção pelos seus companheiros políticos de toda vida, que sustentavam otimisticamente o avanço, com base na força do poder legítimo. Falou mais forte o caráter de Jango que a conveniência política.

Tancredo, embora mais experiente e realista, possivelmente prevendo a vitória dos golpistas, e vendo muitos dos seus pares do velho – e extinto – PSD se passarem para o lado do golpe, também fez a opção dos seus companheiros ligados ao nacionalismo de Vargas, e ficou com Jango.

O outro momento de liderança decisiva foi aquele que levou Ulysses Guimarães, o chefe inconteste da resistência à ditadura, aquele que a lógica política indicava como primeiro presidente civil após o período militar, Ulysses convenceu-se e aceitou a ideia de que Tancredo era o único que tinha condições políticas para assumir a chefia da nação na restauração democrática.

Por que Tancredo era o único? Pela sensibilidade fina, pela habilidade, pela esperteza, sim, tão importante na política.

Esperteza positiva e válida, pois era associada à honestidade e à lealdade.

Pela força da liderança que possuía, pelo comportamento político durante toda a ditadura, orientado por essas qualidades inexcedíveis, Tancredo não deixou queimar as pontes que tinha com alguns antigos chefes militares.

Eu o conheci através de meu pai e encontrei-me com ele na Câmara, na Comissão de Economia, de 63 a 66. Convivemos mais na direção nacional do MDB, cuja cúpula tinha Ulisses na presidência, Brossard, eu e Tancredo nas três vices, e Thales Ramalho na secretaria geral.

Brossard estava ali pelo peso do saber e pelo enorme prestígio pessoal que tinha, mas destoava politicamente do trio pessedista, pela sua origem de Partido Libertador (PL), eminentemente anti-getulista, num meio de formação densamente varguista.

Eu, jovem, socialista, não destoava tanto por ser filho de um velho amigo deles, pessedista também, e por professar uma definitiva admiração pela política desenvolvimentista de Vargas, marcada pela forte presença do Estado. Eles me tinham na conta de um moço ingênuo, mas confiável.

Assim é que o círculo de decisão partia das conversas entre os três velhos pessedistas (Ulysses, Tancredo e Thales), e agregava, em seguida, a mim e, só depois, ao Brossard e aos demais membros da Executiva.

Ulysses gostava do meu estilo e frequentemente me pedia que redigisse as minutas de notas que o partido emitia diante de fatos políticos relevantes. Numa dessas minutas, cujo tema já não me lembro, eu carreguei demasiado na contundência da expressão oposicionista. Os três reconheceram, na leitura prévia do texto, e eu aceitei; Tancredo refez a nota, amenizando-a e ela foi publicada. Dois dias depois, reservadamente, ele me avisou de que, no meu gabinete, tinha alguém do SNI, que havia passado aos militares a primeira versão da nota, a minha, a mais contundente.

Ele sabia. Como? Evidentemente não perguntei, mas ele sabia. E o aviso se confirmou logo depois: a pessoa que havia datilografado a minuta, de minha inteira confiança, no fim de semana seguinte, induziu Mangabeira Unger, que usava meu gabinete em suas articulações em Brasília, vistas como perigosas pelos militares, induziu-o a almoçar e passar uma a tarde de um domingo no agradável Clube do Congresso, que ele não conhecia. Ao voltar ao Hotel, Mangabeira encontrou seu apartamento vasculhado e vários documentos levados. Apessoa de minha confiança foi demitida na segunda-feira.

Tancredo sabia. Porque mantinha pontes, e por isso mesmo, só ele, podia presidir a transição. O destino, oh, o destino, levou-o, já eleito, antes de tomar posse. Mas a tarefa estava executada, a missão cumprida, e Tancredo, em memória, hoje é reverenciado pelos brasileiros como herói inscrito no nosso Panteão Político Nacional.


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