1 de março de 2010

100 anos de Tancredo: “Ele ensinava que não se pode transigir jamais com os objetivos, apenas com a estratégia”,

Tancredo Neves, o homem que devolveu a democracia ao Brasil, completaria 100 anos nesta semana. Cartas inéditas, trocadas entre ele e o ex-presidente Juscelino Kubitschek durante o regime militar, oferecem uma lição de espírito público cada vez mais rara nos tempos atuais
” MEU CARO PRESIDENTE…”

Montagem sobre fotos de Manoel Novaes/Iconografia

O afeto entre JK (à esq.) e Tancredo cresceu conforme cresciam as adversidades políticas enfrentadas por ambos no decorrer da ditadura: mesmo de longe, viraram amigos
Na noite de 13 de junho de 1964, pouco mais de dois meses após o golpe militar que estabeleceu uma ditadura no Brasil, o ex-presidente Juscelino Kubitschek embarcava solitariamente no Rio de Janeiro rumo ao exílio voluntário na Europa. JK, o festejado presidente bossa-nova, tivera o mandato e os direitos políticos cassados pelos militares. Despedia-se do país sob o rugido aziago das turbinas do avião da Ibéria que o levaria a Madri. No jato, partiam Juscelino e os anos dourados. Em terra, ficavam os militares e os anos de chumbo. Quando Juscelino subiu as escadas do avião, um braço o alcançou. Era Tancredo de Almeida Neves, que completaria 100 anos nesta semana, em 4 de março. Aos 54 anos, Tancredo era deputado, crítico do regime, mas ainda não tinha o tamanho de Juscelino. Deixaram-no ficar. Juscelino, porém, projetava uma sombra democrática por demais incômoda aos militares. “Meu caro Tancredo”, escreveu Juscelino de Paris, dois meses depois do embarque, numa das primeiras cartas de uma correspondência que se avolumaria no decorrer daqueles tempos lúgubres, “lembro-me bem de que a sua foi a última mão que apertei antes de me dirigir ao avião. Naquele instante de brutalidade, a sua presença me confortou.”
Foi em meio à brutalidade do regime militar que a amizade entre ambos amadureceu, transcendendo as conveniências da política – e amadureceu por meio das epístolas que ambos trocavam. VEJA teve acesso a um conjunto de dez cartas inéditas, escritas por eles durante o regime militar. Começam em julho de 1964, quando Tancredo descreve os movimentos do regime para destruir a reputação de JK, e terminam em julho de 1975, quando o ex-presidente agradece por mais uma leva de discursos remetidos pelo amigo. A correspondência percorre um arco de onze anos, nos quais Tancredo esteve no Congresso, enfrentando a ditadura por dentro. Ele tentava dissolver na legalidade um regime que operava fora dela. Por fora também agia JK, que, amaldiçoado pelos militares, amargava um limbo público, exilado ora no exterior, ora no Brasil. No plano político, as missivas expõem a convergência de afinidades entre dois grandes estadistas. Desde a despedida no aeroporto do Rio, Tancredo trabalhou para retomar a democracia no país. Foi deputado, senador e governador. Eleito presidente por um colégio eleitoral em 1985, adoeceu um dia antes de tomar posse, morrendo pouco mais de um mês depois – mas sua obra já estava terminada: o poder foi entregue aos civis.
CONGRESSO NO PAU DE ARARALogo depois do golpe, em abril de 1964, os militares enquadram o Parlamento: nos anos de chumbo, Tancredo se transformou no mais astuto articulador político em favor da democraci24 de julho de 1964, quase quatro meses após o golpe militar, Tancredo enviou uma emocionada carta a JK. Escreveu o então deputado: “Sinto que se aproxima do fim o eclipse que nos envergonha diante das nações civilizadas e que já está à vista o dia em que iremos restaurar o clima de dignidade democrática por que anseiam todos os brasileiros, com a revisão das brutais iniquidades que maculam nossa história política”. Tancredo sabia que o regime não agonizava. Queria confortar o amigo. A morte da ditadura só viria vinte anos depois, com a eleição dele à Presidência.Nas cartas trocadas entre os dois, há ideias, há projetos políticos, há a genuína preocupação com os atalhos autoritários tomados pelos militares. Há, sobretudo, a obsessão em restaurar a democracia no país. São linhas escritas com sinceridade por homens que compreendiam as exigências daquela tormentosa circunstância histórica – e, mais do que isso, sabiam quais sacrifícios eram necessários para superá-la. JK e Tancredo usam expressões como “dignidade democrática”, “objetivo maior” e “bravura moral”. Não há nenhuma menção a cargos, emendas, empregos para a família… Nada do que tanto faz salivar a maioria dos políticos do nosso tempo está naquelas linhas, numa mostra constrangedora do declínio ético e intelectual da classe política brasileira. Num ambiente infestado nos últimos anos pelo cinismo dos mensaleiros e pela mendacidade dos deputados propineiros de Brasília, as epístolas servem de guia para outra categoria de políticos – aqueles poucos que reúnem coragem suficiente para caminhar na direção contrária do que exige a cultura partidária do país.
DE PRESIDENTE A PÁRIA JK desembarca no Brasil ao lado da esposa, dona Sarah, após três anos no exílio: cartas revelam angústia com a radicalização do regime
As catas estavam dispersas pelos arquivos tanto de JK quanto de Tancredo. Algumas foram encontradas por Andrea Neves, a neta mais velha de Tancredo, junto aos pertences pessoais do avô. Outras estavam nos papéis de Juscelino, cuidadosamente preservadas por Maria Estela Kubitschek, filha do ex-presidente, que guardava a correspondência para si até hoje. Ela explica por quê: “Demorei seis anos para conseguir abri-las. São como um pedaço do meu pai, do qual não quero me desfazer”. Andrea Neves, que era afeiçoada ao avô, compilou o material. Diz ela: “Meu avô teve uma importância capital na minha vida. É preciso preservar o legado dele”. O governador de Minas Gerais, Aécio Neves, neto de Tancredo e seu herdeiro político, conta que aprendeu a fazer política com o avô, durante a transição para a democracia: “Ele ensinava que não se pode transigir jamais com os objetivos, apenas com a estratégia”. “Se hoje temos uma experiência democrática, devemos isso historicamente a Juscelino e a Tancredo“, afirma o filósofo Newton Bignotto, da Universidade Federal de Minas Gerais.
A correspondência começa com as palavras de um Tancredo ainda perplexo pelos rumos do país. Escreveu ele: “Na sucessão dos dias, (a nação) mais consciência vai tomando de que, com a ignóbil cassação do seu mandato e a suspensão dos seus direitos políticos, cassados e suspensos ficaram os direitos do povo”. O discreto e parcimonioso Tancredo registra também, numa abundância de adjetivos incomum para a sua personalidade: “Em meio a um panorama desolador e aviltante, estamos colecionando muitas decepções dos que desertam, se acovardam ou se acomodam”. Como que para consolar JK, o deputado afirma que, apesar dos ataques do regime contra o amigo, crescia a gratidão do povo, “cada vez mais viva e profunda”.
MAGO DA CONCILIAÇÃOTancredo, o político que consagrou a vida e a morte à democracia, é eleito presidente em 1985: deveres políticos não impediram lealdade a Juscelino (ao lado)
Generosas palavras, partindo de quem partiam, parecem ter conquistado em definitivo um JK já sensibilizado pelo gesto de Tancredo no Aeroporto do Galeão. A partir daí, as cartas crescem em cumplicidade e afeto. De “meu caro”, Juscelino passa a qualificar Tancredo de “querido”, que por sua vez se despede do ex-presidente com o carinhoso “sempre seu”. Nos anos subsequentes, enquanto se exilava no exterior, JK sempre encontrava tempo para escrever a Tancredo. Numa correspondência, redigida em Nova York no dia 2 de maio de 1966, JK mostra-se melancólico, “tentando escrever alguma coisa num triste domingo”. Até que, relata, deparou com uma entrevista do amigo: “A tarde estava chuvosa, e eu senti que um raio de sol a atravessava, ao ler a página que poucos homens teriam a coragem de escrever, nessa hora que pesa como uma campânula de chumbo sobre o nosso pobre país”.
Os dois entendiam de sacrifícios pessoais. Numa carta de dezembro de 1966, JK explica a Tancredo por que iria aliar-se a Carlos Lacerda, seu “mais terrível adversário”. Escreveu o ex-presidente: “Era o único serviço que eu podia prestar ao meu país, mostrando a todos os brasileiros que é possível superar divergências profundas quando se tem em vista um bem maior”. A aliança deu errado, mas o sacrifício mostrou até que ponto ambos estavam dispostos a ir para expulsar os militares do poder. Quando essa possibilidade parecia mais remota, no Natal de 1971, JK antevia que, se houvesse democracia novamente no país, ela passaria por Tancredo: “Nada que venha de você pode me surpreender. A trajetória que o caro amigo está deixando na vida brasileira, tão pobre de homens com a grandeza do seu caráter, é marcada por um rastro de bravura moral”.
Antes do golpe, Tancredo e Juscelino mantinham uma relação de cordialidade política, embora cultivassem várias divergências. Apesar de ser um homem de diálogo e conciliação, Tancredo era contra qualquer acordo com os militares golpistas. Juscelino, cujo governo sobrevivera graças ao apoio de setores das Forças Armadas, acreditava ser possível um governo de coalizão quando surgiram os primeiros sinais de ruptura institucional. A cassação de Juscelino e tudo que veio a acontecer depois mostraram que Tancredo estava certo. Lidas agora, palavras tão fortes podem aproximar-se do melodramático, do cabotino. A emoção que transborda das cartas, contudo, resulta dos esforços que lhes eram exigidos: para JK, deixar o país, a família, sua obra; para Tancredo, estar sob a mira constante de um regime que pouco hesitava em torturar. JK morreu em 1976, ainda perseguido e humilhado, e não teve a chance de assistir ao fim da ditadura. Tancredo sacrificou seus últimos dias de vida para assegurar que morresse junto com a ditadura, recusando-se a receber atendimento médico quando já estava muito doente por temer que os militares não entregassem o poder a seu vice, José Sarney. Não deu apenas sua vida à democracia: deu sua morte também.


Fonte: Diego Escosteguy – Revista Veja

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